28 de setembro de 2008

Grito do Passado


“Não basta que os lábios gotejem leite e mel, pois se o coração nada tem com isso há hipocrisia.”

A confusão mental gerada pelas ressonâncias do passado, latentes de culpas que brotavam de seu inconsciente, estava-na perturbando de tal maneira que já se tornava difícil um sono tranqüilo. A princípio tomou remédios, pensando tratar-se de uma depressão. Depois a fé a levara para buscar na oração um alento. De igreja em igreja, de novena em novena, o alento era lento demais e o sofrimento, insuportável. Quando sua capacidade mental já não suportava mais e o desequilíbrio tomava conta, Deus sorriu e mandou que um anjo a conduzisse, talvez para o lugar mais humilde por onde andara até então. A convite de uma amiga, foi até um terreiro de umbanda em um bairro distante do centro da cidade. Situado nos fundos de uma construção simples, o local, além de apertadinho, era pobre demais.
Seu estado depressivo era tão grande que, ao ouvir o ponto cantado de abertura, as lágrimas começaram a escorrer pela face, levando-a logo a soluçar sem controle nenhum. Acalmada por um cambono, logo que iniciaram as incorporações, foi levada ao atendimento de um preto velho. Sentando-se em frente ao médium incorporado, sentindo em seu corpo etérico as vibrações emanadas da entidade, a emoção voltou e o choro recomeçou. O carinho com que se lhe seguravam as mãos, as palavras simples, mas carregadas de amor do preto velho, aguçadas pelo cheiro da erva verde macerada, agiam como verdadeira comporta que se abria dentro de seu coração, liberando todas as emoções.
- Deságua toda essa tristeza, zi fia. Deixa que o nego veio leve s’imbora essa dor e alivie o peito de zi fia. Esse nego veio sabe que zi fia chora porque tem uma culpa que nem sabe de que...
- Isso mesmo... sinto culpa e tristeza e tenho pesadelos terríveis quando consigo dormir.
- E com que zi fia sonha?
- O sonho se repete. Vejo crianças dentro de um lago lamacento e, quando tento tirá-las de lá, me puxam e eu acordo sufocada, como se estivesse morrendo afogada.
Nesse instante, no ambiente astral do terreiro que, diferentemente do físico, era grande, organizado e onde um grande número de trabalhadores espirituais auxiliavam o trabalho dos médiuns encarnados, já era mostrada para o preto velho a história triste de um passado remoto, onde aquela mulher atuara como uma avó relapsa. Dama requintada de uma sociedade rica da época e mãe de uma linda moça que criara com todos os mimos, viu-se na situação em que a filha, apaixonada e inexperiente, engravidava de um moço pobre. Escondendo até onde pôde a gravidez, ao ser descoberta foi providenciada para mão e filha uma longa vviagem, até que nascesse a criança. Assim que o parto se efetivou, às escondidas da filha mandou que jogassem a criança num lago próximo à cidade, amarrada a uma pedra, para que nunca fosse descoberta. Para a filha, mentiu que a criança nascera morta e, assim, a vida da rica dama continuou, sempre fingindo que era feliz.
Agora, nessa encarnação, desencadeou um processo culposo a partir do nascimento da primeira neta. Retornava outra vez o mesmo espírito que fora jogado no lago, e, ao depara r com aqueles olhinhos azuis a fitá-la no berço, acordou em seu inconsciente o que apenas dormia, apesar dos séculos.
Durante o sono, essa culpa estampava-se em seu corpo emocional e, na tentativa de desfazer o mal do passado, dirigia-se ao mesmo lago e lá tentava resgatar o corpo da neta assassinada. Toda essa desordem era fomentada pela presença de espíritos obsessores que vibravam na mesma energia e se compraziam em vê-la sofrer, atiçando assim sua culpa.
O preto velho Pai Antonio, ao observar o quadro que se desenrolara no passado daquela mulher, acionou por seu comando entidades que realizam uma limpeza em seu campo magnético, impregnado de larvas e de fluídos energéticos densos, semelhantes a uma lama negra. Enquanto isso, um guardião da linha dos exus seguia por um cordão que saía de seu corpo espiritual até um lago lamacento, que na verdade era uma criação mental acionada por sua culpa e que estava plasmado no plano astral denso, formando um bolsão onde habitavam outros espíritos deformados, de criaturas humanas que haviam sido mortas e atiradas na água para terem seus corpos escondidos e que sugavam sua energia através daquele cordão energético. Pela atuação de falangeiros de Ogum, foi providenciado o socorro daqueles seres e eliminado o local pela transmutação das energias.
- Zi fia sabe que precisa ter fé em Deus e fazer suas rezas antes de dormir, pedindo proteção para seu sono. Nego veio não tem as palavras bonitas, mas vai explicar para a filha que seu espírito viaja enquanto seu corpo físico dorme no leito e é preciso preparar essa viagem. Com o pensamento elevado, a filha precisa pedir ajuda aos seus protetores, como também precisa aprender a se perdoar pelos seus erros do passado. O perdão a nós mesmos e aos outros pelas faltas cometidas não é aquele da boca para fora, mas sim o arrependimento e o verdadeiro sentimento de humildade e entendimento de que todos ainda somos seres falíveis. É fazer do erro, do outro e dos nossos, um aprendizado com o objetivo firme de evoluir. Carregar culpas é como andar juntando pedras no caminho e carregá-las nas costas. Vai chegar um momento em que teremos que parar, pois o peso vai se tornando insuportável. A borracha que apaga as culpas do passado se chama caridade. Se matamos, vamos agora incentivar a vida, vamos socorrer, curar. Se roubamos, vamos agora trabalhar dobrado e incentivar o progresso e a justiça. Se magiamos para o mal, agora é hora de magiar através do amor e transformar em luz aquilo que nossas mãos escureceram. Pense nisso, filha e, antes que volte na próxima lua, nego veio pede que vá até uma cachoeira, acende uma vela em cima de uma pedra e lá tome um banho de corpo inteiro, pedindo que se limpem essas energias que estão interferindo no seu sono.
Pai Antonio sabia que a ordem do banho de cachoeira tinha um sentindo muito maior do que uma limpeza. Na cachoeira, um dos centros de força da natureza, encontraria aquilo que no nível energético já se fazia, ali no terreiro. No encontro de seu corpo físico com os elementos da água, dos minerais, do vegetal da terra, do ar, do éter e do fogo estaria repondo as energias perdidas no processo obsessivo sofrido. Além disso, seriam despolarizados de seu mental os quadros culposos através da vibratória de Xangô, que regia sua coroa e que, por estar atuando dentro de seu ponto de forças, alcançaria maior êxito. Além disso, Mamãe Oxum, derramando sobre ela suas águas doces, imantaria seu coração com amor, para que pudesse, no presente, alimentar somente esse sentimento pela neta que voltava ao seu convívio.
Ao sair do terreiro, a mulher sentia-se renovada. Seu coração já não estava apertado e dolorido e, ao beijar as mãos do médium que dava passagem ao Pai Antonio, de seus lábios saíram luzes azuladas que se espalharam pelo ambiente, provando que não há mal impossível de ser desfeito quando o que atua é a energia do amor.
Amor que se faz presente nos lugares mais simples, através da presença de um mensageiro das mais altas hierarquias celestes, travestido de um humilde preto velho que, independentemente da crença dos humanos, desce ao plano terreno e, pitando um cachimbo, realiza a profilaxia necessária à manutenção da ordem na vida dos seres; manipulando uma erva cheirosa, a transforma em verdadeiro medicamento que, atuando na coesão molecular, transmuta e cura. Riscando ou cantando pontos, movimenta falange que, sem tempo ou distância que os atrapalhe, desmantelam verdadeiros exércitos atuantes das trevas, desfazem magias e colocam de volta os seres no caminho da evolução.
Meu pito ta apagado
Minha marafa acabou
Vou trabalhar p´ra suncê
Porque sou trabalhado...

Causo de Umbanda Vol. 2 – Vovó Benta (psicografado por Leni W. Saviscki) Página 47 até 51

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