A historinha tem origem desconhecida, mas vale a pena contar.
Um escritor, vaidoso como costumam ser alguns escritores, está conversando com um amigo. Fala non-stop sobre seu tema preferido: ele próprio. Fala, fala, até que de repente dá-se conta de que aquilo não é justo.
– Só falamos de mim – diz – vamos falar um pouco de você.
E pergunta:
– O que você acha da minha obra?
O anônimo escritor não é um caso isolado. O pronome “eu” está cada vez mais presente em livros, em blogs, em artigos. Na ficção, o tradicional narrador onisciente, que falava na terceira pessoa, foi para o espaço. Uma tendência que, é bom ressaltar, não vem de hoje. Ela faz parte da História, com H maiúsculo.
A modernidade vê o despertar do eu. A noção de indivíduo afirma-se cada vez mais e é reforçada por um sistema econômico que privilegia a iniciativa privada. Desse processo dá testemunho um objeto que então torna-se muito popular: o espelho. Todo mundo quer ter espelho; todo mundo cultiva a própria imagem. Desaparece o anonimato na arte, na literatura. Autores de textos como o Antigo Testamento eram desconhecidos, e o mesmo sucedia com as obras de arte que figuravam nas igrejas. Agora, não. Agora os autores querem ser conhecidos, prestigiados, e, se possível, bem pagos.
Sigmund Freud, que adorava ficção, criou três míticos personagens para explicar o funcionamento de nosso psiquismo: o Id, que corresponde aos nossos instintos, o Ego, que somos nós mesmos ou a imagem que de nós fazemos, e o Superego, que corresponde aos dispositivos morais que nos guiam. Ao longo da história da humanidade, cada uma dessas figuras teve o seu período de predominância, a começar pelo Id, o troglodita. O homem das cavernas era guiado pelos dois instintos básicos, o instinto de sobrevivência e o instinto da reprodução. Faria o que pudesse para conseguir comida e fêmeas; inclusive mataria seus competidores sem o menor problema. Mas, à medida que a vida social foi se desenvolvendo, esse estilo de conseguir as coisas revelou-se contraproducente, quando não perigoso. Tornava-se necessário um jeito de conter a violência. É então que emerge o Superego.
A melhor representação do Superego é a divindade, sobretudo o Deus do monoteísmo, o Deus barbudo, poderoso, o Deus que vê tudo, que sabe tudo, que castiga o Mal e recompensa o Bem. É o Deus das três grandes religiões – judaísmo, cristianismo, islamismo – e consolidou-se na Idade Média.
Ego, Superego, Id. O cenário para a grande encenação de nossas vidas está armado e nele o Ego será o ator principal.
A irrupção do individualismo tem seu preço. O Ego triunfa, ocupa espaço; precisa, porém, civilizar-se. Exibir-se, sim, mas ao menos fingindo cortesia (“Vamos falar um pouco de você”). O Id, agora reprimido, protesta; o Superego, por sua vez, continua fazendo exigências religiosas, morais. Resultado: conflito, triste conflito. Não por acaso a modernidade nasce melancólica, não por acaso a depressão é cada vez mais freqüente e, não por acaso, surge a psicanálise. O divã e o Prozac são as muletas terapêuticas do Ego. O mundo, às vezes, é pequeno para tanto Eu, para a epidemia de narcisismo.
E como é que a gente lida com essa situação? Devemos negar o nosso eu, devemos sumir no grupo, na comunidade, na multidão?
De jeito nenhum. A emergência do eu resultou da evolução da humanidade; é um sinal de progresso, e de progresso irresistível. Tudo o que a gente precisa fazer é modular o nosso eu, é sintonizá-lo com outros eus. “Eu” tem de soar como “nós”. Se, ao falarmos de nós próprios, traduzimos sentimentos, idéias e emoções que podem ser partilhados pelos outros, estaremos nos valorizando sem desvalorizar nossos semelhantes.
Fácil de dizer, difícil de fazer, ponderarão vocês. Verdade. Mas com a prática a gente aprende. Como aprenderia o escritor de nossa historinha, se tivesse tempo e humildade suficientes.
Um escritor, vaidoso como costumam ser alguns escritores, está conversando com um amigo. Fala non-stop sobre seu tema preferido: ele próprio. Fala, fala, até que de repente dá-se conta de que aquilo não é justo.
– Só falamos de mim – diz – vamos falar um pouco de você.
E pergunta:
– O que você acha da minha obra?
O anônimo escritor não é um caso isolado. O pronome “eu” está cada vez mais presente em livros, em blogs, em artigos. Na ficção, o tradicional narrador onisciente, que falava na terceira pessoa, foi para o espaço. Uma tendência que, é bom ressaltar, não vem de hoje. Ela faz parte da História, com H maiúsculo.
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A modernidade vê o despertar do eu. A noção de indivíduo afirma-se cada vez mais e é reforçada por um sistema econômico que privilegia a iniciativa privada. Desse processo dá testemunho um objeto que então torna-se muito popular: o espelho. Todo mundo quer ter espelho; todo mundo cultiva a própria imagem. Desaparece o anonimato na arte, na literatura. Autores de textos como o Antigo Testamento eram desconhecidos, e o mesmo sucedia com as obras de arte que figuravam nas igrejas. Agora, não. Agora os autores querem ser conhecidos, prestigiados, e, se possível, bem pagos.
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Sigmund Freud, que adorava ficção, criou três míticos personagens para explicar o funcionamento de nosso psiquismo: o Id, que corresponde aos nossos instintos, o Ego, que somos nós mesmos ou a imagem que de nós fazemos, e o Superego, que corresponde aos dispositivos morais que nos guiam. Ao longo da história da humanidade, cada uma dessas figuras teve o seu período de predominância, a começar pelo Id, o troglodita. O homem das cavernas era guiado pelos dois instintos básicos, o instinto de sobrevivência e o instinto da reprodução. Faria o que pudesse para conseguir comida e fêmeas; inclusive mataria seus competidores sem o menor problema. Mas, à medida que a vida social foi se desenvolvendo, esse estilo de conseguir as coisas revelou-se contraproducente, quando não perigoso. Tornava-se necessário um jeito de conter a violência. É então que emerge o Superego.
A melhor representação do Superego é a divindade, sobretudo o Deus do monoteísmo, o Deus barbudo, poderoso, o Deus que vê tudo, que sabe tudo, que castiga o Mal e recompensa o Bem. É o Deus das três grandes religiões – judaísmo, cristianismo, islamismo – e consolidou-se na Idade Média.
Ego, Superego, Id. O cenário para a grande encenação de nossas vidas está armado e nele o Ego será o ator principal.
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A irrupção do individualismo tem seu preço. O Ego triunfa, ocupa espaço; precisa, porém, civilizar-se. Exibir-se, sim, mas ao menos fingindo cortesia (“Vamos falar um pouco de você”). O Id, agora reprimido, protesta; o Superego, por sua vez, continua fazendo exigências religiosas, morais. Resultado: conflito, triste conflito. Não por acaso a modernidade nasce melancólica, não por acaso a depressão é cada vez mais freqüente e, não por acaso, surge a psicanálise. O divã e o Prozac são as muletas terapêuticas do Ego. O mundo, às vezes, é pequeno para tanto Eu, para a epidemia de narcisismo.
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E como é que a gente lida com essa situação? Devemos negar o nosso eu, devemos sumir no grupo, na comunidade, na multidão?
De jeito nenhum. A emergência do eu resultou da evolução da humanidade; é um sinal de progresso, e de progresso irresistível. Tudo o que a gente precisa fazer é modular o nosso eu, é sintonizá-lo com outros eus. “Eu” tem de soar como “nós”. Se, ao falarmos de nós próprios, traduzimos sentimentos, idéias e emoções que podem ser partilhados pelos outros, estaremos nos valorizando sem desvalorizar nossos semelhantes.
Fácil de dizer, difícil de fazer, ponderarão vocês. Verdade. Mas com a prática a gente aprende. Como aprenderia o escritor de nossa historinha, se tivesse tempo e humildade suficientes.
30 de novembro de 2008
MOACYR SCLIAR
Zero Hora
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